terça-feira

Murray Stein - Jung, O Mapa da Alma - Uma introdução

Existem por aí diversos autores difíceis de encarar. Nietzsche, que para alguns parece acessível, é um deles. Weber, pela enormidade de sua tarefa, outro. Mas há dois do ramo da psicologia que poucos se dão a tarefa de abordar frente a frente. Um deles, como é óbvio, é Freud. Outro, Jung. Não nos esqueçamos de Lacan, mas aqui o problema é outro.
Fiquemos em Jung. "Jung, O Mapa da Alma - Uma Introdução", de Murray Stein, já nos diz a que veio pelo título. Dividido em 9 capítulos, mais a introdução, o livrinho - 212 páginas - promete esboçar (quase) todos os principais conceitos do universo junguiano sem com isso simplificar a tarefa de sua compreensão. Passando pela consciência do ego, complexos, teoria da libido, instintos, arquétipos, inconsciente coletivo, persona e sombra, animus e anima, o si-mesmo, individuação e sincronicidade, o livro dedica em média 20 páginas para cada conceito ou conjunto de conceitos. Ficam as perguntas: em que medida o universo conceitual junguiano pode realmente interessar a quem não pretende se dedicar ao estudo da psicanálise? E, ainda mais: o que pode retirar de útil quem, em última instância, tem uma leve curiosidade sobre o assunto mas não pretende por isso entrar na obra de Jung?
A indicação do livro veio, no meu caso, pelas mãos de minha ex-terapeuta, Mercedes. À época, parecia que somente pela via da razão eu conseguiria "entrar" de forma efetiva em meu tratamento, dado que eu relutava em tomar remédios e, ainda mais, em ceder à terapia em detrimento da aparente interminável expressão de dilemas intelectuais que só de passagem poderiam interferir no processo psicanalítico em si. Comprei o livro, meio a contragosto, e ao lê-lo logo o abandonei. Não nutria eu à época o menor interesse por mais teorias, mais do que todas
as que haviam fornido minha formação de jornalista, estudioso de filosofia e de ciência política (sem contar o teatro, a que eu já vinha me dedicando).
Aconteceu que somente há muito pouco tempo - poucas semanas - resolvi encarar o livrinho. Eu, que sempre preferia ler OS AUTORES e não OS COMENTADORES, precisei admitir que não tinha como encarar a obra completa de Jung, ainda mais para meus objetivos de então.
Stein começa atraindo a atenção do leitor à tarefa investigadora de Jung. Chama Jung de um explorador do mar de mistério (Mare Ignotum) que é o inconsciente, em tarefa similar à dos astronautas que em 1961 - quando do falecimento de Jung - começavam a explorar o espaço. A imagem pode parecer fraca ou mesmo batida, mas Stein argumenta, salientando que até então pouco se sabia dos motivos que conduziam a alma humana à sua definição, e que Jung, por meio da assim chamada - por ele - psicologia analítica, propôs-se em seu tempo a explorar cientificamente esse outro mare ignotum, mar desconhecido de todos, especialistas ou não, e que levava a todos em trajetórias às vezes erráticas, a maioria das vezes mal resolvidas, rumo ao seu termo. Haveria alguma forma de entender as trajetórias humanas sem para isso recorrer a teorias inconsistentes ou, falando de outra forma, pouco científicas? O enfrentamento desse desafio teria cabido aos fundadores da psicologia, a Freud e Jung, especialmente. Até hoje muitos atribuem a Freud - especialmente a ele - a retirada do véu de racionalidade que até então era atribuído ao ser humano, como que para disfarçar os impulsos que levavam a humanidade à loucura, a impulsos mal-resolvidos, pouco explicados e - pior - tratados de forma insuficiente (basta reparar em todas as menções de peças contemporâneas a eles, psicanalistas, e especialmente a Freud). Jung, nesse prisma, não é contudo tão levado em conta por educadores, sociólogos ou afins. Haveria algo de mágico, de pouco científico, nas abordagens junguianas da alma humana. Eu mesmo zombava dos "brinquedinhos" (figuras como anões e outras) que
povoavam os consultórios junguianos. Mas deixemos isso de lado.
Não que Jung comece do zero, como se antes o conhecimento que a humanidade tem do homem fosse uma tábula rasa. Não: Stein já no começo salienta a dívida que Jung sempre disse ter de Goethe, Kant, Schopenhauer, Carus (?), Hartmann e Nietzsche; mas, mais ainda, Stein ressalta que Jung preferia se dispor do lado dos chamados gnósticos antigos e dos alquimistas medievais (página 15, da introdução), embora seu filósofo preferido fosse Kant e a influência da dialética hegeliana fosse evidente. Algo muito estranho, tudo isso. Mas serve para localizar o intuito de Jung e indicar que, embora Jung se dispusesse a traçar o chamado mapa da alma do ser humano, seria a pessoa mesma quem deveria descobrir o seu próprio, o preciso mapa de sua alma (página 16, da introdução). O próprio Stein localiza seu interesse na obra de Jung, que, segundo ele, não é "compulsivamente coerente".
O trabalho de Stein começa pela consciência do ego. O que seria isso? Uma das estruturas psíquicas fundamentais do ser humano (ego, sombra, anima, animus e si-mesmo), o ego é o centro do campo da consciência, (... ou seja ...) o ego é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa". Ok, então é simples. Então, o ego é a consciência? Não, o ego é o centro da consciência, em escritos que vão do começo ao fim da obra de Jung. Ocorre que o maior interesse de Jung e dos predecessores e sucessores NÃO É a consciência, mas ao contrário o inconsciente. Já a consciência, ou seja, "o estado de conhecimento e entendimento de eventos externos e internos" precede o ego, que se converte em seu centro. O ego seria para Jung o campo que, "compondo o centro crítico da consciência, determina que conteúdos permanecem no domínio (dela) e quais se
retiram, pouco a pouco, para o inconsciente". Ou seja, é como se o ego fosse um filtro, no interior da consciência, que desempenharia um papel fundamental em relação àquilo que iria posteriormente se encaminhar ao inconsciente. Imagine um pensamento reprimido, por exemplo. Ele seria um conteúdo que o ego não aceita e que é transportado ao inconsciente. Apesar disso, desse papel de transportar certos conteúdos, o ego seria moralmente neutro, no entender de Jung.
Pode-se perceber então que o "ego" de Jung não tem nada a ver com o ego como é normalmente entendido ("aquele cara tem um ego do tamanho de um bonde"). Em poucas palavras, o ego separa o indivíduo de outras criaturas conscientes, assim como de outros seres humanos. Percebe-se então que o "ego" é um termo técnico. Como são técnicos todos os outros termos, já citados de passagem: sombra, anima, animus, si-mesmo, sincronicidade, etc.
Voltando ao ego. Pode-se imaginar que o ego seja um conceito simples de depreender (sendo aliás o mais básico de todos). Mas não é esse o caso. Um exemplo: o ego, funcionando como ativador da energia psíquica do indivíduo, funciona de forma a mover grandes somas de conteúdo consciente, sim, mas pode ser influenciado por conteúdos estímulos psíquicos internos e
ambientais externos, que são por sua vez transformados em emoção (como no caso de filmes, por exemplo). Em suma, o ego, sendo entendido dessa forma, pode lembrar o inconsciente. Mas
não, é o ego atuando, então é o centro da consciência atuando. O ego, mesmo sendo o mais básico dos conceitos junguianos, não é necessariamente simples. Como não são simples os outros conceitos.
Em que medida eles ajudam a entender o ser humano, com todas suas pulsões e contradições? Diria eu que na medida em que a filosofia possa parecer para alguns insuficiente nesse afã e em que por outro lado não se queira apelar à religião. Resta dizer que a obra completa de Jung acaba de ser relançada pela Vozes (2 mil reais a obra toda). Jung - O Mapa da Alma pode significar a diferença entre permanecer ignorando por completo esse universo e se resolver a optar por complicar a vida - para descomplicá-la. Meu caso.

Luiz Roberto Galizia - Os processos criativos de Robert Wilson

Vez ou outra aparecem nos jornais menções a esse que ora é dito simplesmente como "badalado" ora como fundamental para entender o teatro no século XX: o norte-americano Robert "Bob" Wilson. "Os processos criativos de Robert Wilson", de
Luiz Roberto Galizia, é a tentativa desse ecano já falecido
em tentar decifrar a esfinge. Tudo começa com uma apresentação do também recentemente falecido Alberto Guzik, que remete-nos aos dilemas do autor, estudioso e prático do teatro, e dentre outras coisas fundador do lendário Teatro do Ornitorrinco. Sabemos então que Galizia não era mais um iniciante quando meteu-se a estudar a obra do americano. Que já havia passado por Berkeley e quase desistira do doutorado quando - em reconstituição feita pelo Guzik - decidiu-se por assumir o desafio de tentar entender o colosso. Conheceu o próprio, participou como figurante de algumas de suas peças,
pesquisou insistentemente e analisou diversas criações de
Wilson, no formato teatro, vídeo, dança, laboratórios, etc.,
em suma, avançou por dentro e por fora da trajetória do
americano até 1986 - data da publicação da obra, em inglês.
Sabendo-se o quanto escasseiam obras com tamanha
perspectiva, o livro assume então importância ainda maior -
ainda mais para nós, brasileiros (procurem-se obras do gênero lá fora e só sobra uma, de Stefan Brecht, The Theatre of Visions, citado pelo próprio Galizia).
Mas, afinal de contas, por que Bob Wilson é - ou parece ser - tão impressionante? O próprio Galizia conta. Indo desde sua desistência em seguir carreira em administração, passando por sua repentina fuga a Paris para estudar pintura, onde assistiu à nata do teatro e da ópera de então, assim como às artes plásticas em geral, Galizia mostra como Wilson entrou no teatro e na arte por vias no mínimo inusitadas - formando-se em arquitetura de interiores, happenings e cursos de expressão e sensibilização corporal para crianças retardadas. Trabalhando já então com cenografia, vídeo e dança, Wilson não deixou por isso de dedicar esforços à arquitetura, de vez em quando destacando-se por projetar e atuar em performances e happenings. Mas e daí, diria o desavisado? Hoje é até comum acompanhar essas erráticas trajetórias dos artistas plásticos em geral. Daí que com toda essa bagagem - e o apoio de uma instituição (a Byrd Hoffman, no Soho) que lhe dava sinal verde para experimentos os mais diversos -, Wilson iria se dedicar a experimentos em espetáculos que lhe renderam, ao menos então, diversas críticas ácidas de menosprezo. O que dizer, por exemplo, de um espetáculo de duas horas em que pessoas sentavam-se e levantavam-se de cadeiras, que se alinhavam em direção ao público, atravessavam a sala e simplesmente repetiam tudo uma e outra vez, sem aparentemente haver motivação alguma para isso? Isso só para citar por cima um dos experimentos do Wilson de então. Tudo ficaria por isso mesmo se Wilson não radicalizasse e conseguisse viabilizar espetáculos que se estendiam dias inteiros ou mesmo semanas, sem parar, e realizar oficinas cujo objetivo era simplesmente "estimular seus membros a tornarem-se mais conscientes de seus próprios corpos e das maneiras pelas quais estes interagem com os outros corpos que os rodeiam" (página XXVI, da introdução). As peças resultantes, de dimensões gigantescas, envolvendo atores, dançarinos e performers profissionais assim como pessoas sem formação em especial nessas áreas, iriam deixar um rastro indelével, tornando-se referência nos mais variados âmbitos. Tudo pareceria ainda pouco para o não-especialista, não fosse a incursão de Wilson nos mais variados campos de pesquisa, muitos estranhíssimos, como "câmara lenta, ondas cerebrais, cochilo, design arquitetônico, pintura, rock progressivo, matemática, terapia, silêncio, teatro ambiental, computadores, poesia concreta, espaços e galerias de arte, drogas, sexo, performances, comunicação entre surdos-mudos, dança moderna e pós-moderna, autismo, religiões orientais, filmes mudos", etc. etc. etc. Tudo poderia parecer ainda simplesmente curioso se, apenas como exemplo da seriedade do seu trabalho, Wilson não viesse também a trabalhar, em parceria, com pessoas que de outra forma simplesmente não existiriam para a sociedade e também para si mesmas: no caso, autistas, como Christopher Knowles, rapaz que desde muito jovem empenhava-se, autista, em desenvolver relações matemáticas com a linguagem. Esses
experimentos a tal ponto atraíram Wilson que ele não hesitou em realizar parcerias com Knowles, o que dentre outras coisas revelou aquele que até o momento sõ era mais um autista ao mundo das artes plásticas, tornando-o aRtista.
A lista de espetáculos desenvolvidos e tocados por Wilson e equipe incluiriam A Vida e Época de Joseph Stálin, que viria a ser apresentada no Brasil, em plena ditadura, com o nome de A Vida e Época de Dave Clark - para não provocar a onça com vara curta. Dessa obra, centenas de pessoas participariam, inclusive Galizia, ocupando 12 horas no Teatro Municipal em São Paulo, num espetáculo que deixou fortes impressões no autor. Hoje, após diversas fases, dentre elas a retomada da palavra - os espetáculos então eram praticamente mudos, ou quase -, Wilson é um encenador respeitadíssimo, disputado a tapa por profissionais das mais diversas áreas, a ponto de poucos poderem se dar ao luxo hoje de simplesmente não terem sido de alguma influenciados por ele - que seja até pela oposição a ele.
No livro, Galizia embarca nos métodos de Wilson de várias formas: na descrição pormenorizada de um vídeo, chamado Vídeo 50, em que 95 curtas cenas minuciosamente controladas, dispostas umas após as outras, propunham novas formas de entender a imagem e o meio audiovisual; na análise de "Eu estava sentado no meu pátio esse cara apareceu e eu pensei que estava enlouquecendo", obra feita por Wilson em parceria com Knowles, explorando limites da linguagem; no entendimento da importância da dança no trabalho de Wilson; na análise das "peças-diálogo" de Wilson, também fruto da frutífera parceria com Knowles; no entendimento do teatro estático de Wilson, em que os objetos e os vazios são trabalhados a ponto de exibirem sua individualidade em referência ao espaço e tempo circundantes; na rememoração da produção de A Vida e a Época..., apresentada no Brasil; e finalmente no esmiuçamento da obra em termos de movimento, voz, câmara lenta, ritmos, dança e percepção sensorial, nas fases de ensaios (note-se que em Wilson o ensaio compõe o próprio espetáculo, não havendo clara distinção entre ambos), roteiro, apresentação e público. Fecham o livro duas entrevistas com profissionais que trabalharam com Wilson em dois momentos de sua carreira.
O livro de Galizia, como já foi dito, para em 1986, momento em que a análise foi feita. Claro que desde então muitas águas devem haver rolado no teatro e obra de Wilson. Em que medida o livro poderá ser útil a quem deseja se enfronhar em um já clássico contemporâneo, creio que vá depender do afã de quem for lê-lo. Galizia, como Guzik nota, pautava-se muito especialmente por defender, em prol de sua arte, o radicalismo no teatro e nas artes em geral. A que ponto o leitor pode-se sentir envolvido nessa luta, só a leitura poderá dizer.

Tadeusz Kantor - O Teatro da Morte

2 - segunda tentativa
Todo interessado em teatro contemporâneo cedo ou tarde depara-se diante da figura do polonês Tadeusz Kantor. Pintor de formação, cenógrafo (com o que entrou no teatro) e dramaturgo por prática (difícil denominá-lo assim, dado seu
trabalho com manifestos, atores e, digamos, direção), Kantor realizou em vida um trabalho difícil de entender, classificar e de explicar (eu mesmo levei um bocado para perceber seu valor - mas ainda não o entendi). Muito pode-se dizer quanto às formas pelas quais Kantor influenciou o teatro e as outras artes plásticas. Uma forma de fazê-lo é dizer que ele foi o "inventor" do espetáculo fora do teatro - imagino que ele renegaria minha colocação. Ou do happening, o precursor da performance. Ou dizer que com ele passou a haver um diálogo efetivo entre pintura, teatro (assim como sua independência) e a radical recusa de qualquer compromisso exterior à arte por parte do artista (qualquer que seja ele). Pode-se também afirmar que é com ele que o não-ator passou a ter um papel efetivo no palco - mas essa afirmação eu também acho que ele renegaria. Kantor abolia também a distinção espetáculo-ensaio, com o que ele também aparecia em pessoa no palco. Ele também criava afeição com objetos simples os mais diversos (só ele? andem por aí e vejam): o guarda-chuva, por exemplo. Pois então: Kantor tem todo um texto afeito a ele (minha intenção é optar por sua radicalidade, o guarda-chuva quebrado - quer coisa mais inútil? - mas isso, vejo, ele também já fez rs). Pois Kantor aferrava-se ao "valor" do objeto mais raso possível para aproximar a arte a si mesma (mas há formas mais eficazes de se falar disso - basta procurar no Google - e, ainda melhor, de vê-lo ao vivo - acho que ele também riria disto - dá para ver que ele tinha muito bom humor). Mas Kantor era também corajoso, montando espetáculos clandestinos durante a Segunda Guerra. Mas falemos do livro. O livrinho que resenho aqui é uma compilação da maioria dos manifestos de Kantor. Pode parecer pouco (para quem acharia melhor ter acesso aos espetáculos). Mas é lendo os manifestos - e avaliar as muitas fotos reproduzidas no livro - que é possível entender sua centralidade nas propostas de Kantor. Os textos foram compilados por Denis Bablet, especialista em Kantor com livros em todo o mundo. Dele é também a apresentação (refiro-me ao texto que pincela a carreira do polonês).
Desta retiro quase ao acaso apenas três itens: 1) sua oposição ao teatro de "'empresas' que 'programam', 'fabricam' espetáculos que entregam ao 'consumo' ao ritmo das temporadas; 2) sua recusa a "'embasbacar'", embora "os meios que (Kantor) utiliza são fortes, provocantes, contestadores; e 3) reproduzo o próprio: "meu papel em relação ao ator se reduz [ao trabalho de] impor situações que, evidentemente, eu crio". E mais importante (ao menos para mim): "Essas situações determinam o ator deixando-o em liberdade para revelar sua individualidade". Aproveito para destacar a palavra "liberdade", quem sabe em seu trabalho tão ou mais importante que esta outra: "independência".
Para quem prefere ter uma sinopse do livro. Este passa por diversos manifestos, a saber: o teatro independente, o teatro cricot 2, o teatro informal, o teatro complexo (com destaque ao espetáculo "Armário", que é praticamente reproduzido no livro), as embalagens (manifesto de 1962, extremamente difícil, ao menos para mim, de apreender em todas suas acepções), o teatro zero, um capitulo sobre as fronteiras da pintura e do teatro (com a defesa da antiexposição e do happening), o teatro-happening (com desenhos de extrema personalidade e a defesa dos gestos extremos), o teatro i, um capitulo sobre "do real ao invisível", outro sobre Maria Stangret, o teatro cricot 2, o teatro impossível, e por último o teatro da morte, que dá nome ao livro. Há ainda a reprodução de A Barraca de Feira, e um encerramento, O Artista. Pode-se passar por Kantor simplesmente? Acho difícil.
Especialmente porque todas as questões que ele toca são tão importantes porque atuais. Com isso, ao menos comigo, o livro torna-se quase vivo, que ironia em se tratando de Kantor.

1 - primeira tentativa
O estudioso - e mais ainda o realizador - de teatro nos dias de hoje tem sempre muito a fazer para atualizar seu entendimento do panorama atual teatral, brasileiro ou mundial. Nesse esforço, é preciso em primeiro lugar notar que há realizadores que deixaram sua marca em todo o mundo, alguns já há alguns anos, e que devem obrigatoriamente ter sua trajetória acompanhada. Um desses realizadores é o polonês Tadeusz Kantor. Pintor de formação e cenógrafo na prática, Kantor destacou-se, dentre outras coisas, por questionar sem cessar o teatro acomodado em que muito do que vemos se torna com o passar do tempo e das discussões sobre arte e futuro. Mas não é muito fácil auferir em que realmente consiste esse seu desafio. Caracterizado por liderar manifestos de origem as mais das vezes obscura, Kantor toca porém muito profundamente nos pontos que devem fazer do teatro uma arte viva e pulsante. Teatro Zero, Teatro i, Teatro da Morte são apenas alguns desses manifestos. O livro aqui resenhado é uma compilação desses manifestos e de escritos os mais diversos, de autoria do próprio Kantor, com que é possível acompanhar, no sabor da batalha, muito da trajetória do próprio criador. Organizada e apresentada por Denis Bablet, reconhecido estudioso da obra de Kantor, a obra aqui resenhada conta também com uma breve mas muito informativa apresentação - "O jogo teatral e seus parceiros" - do próprio Bablet, que serve para contextualizar a trajetória de Kantor, ressaltando a coerência de toda sua luta - luta, aliás, que ele encarava com extremo bom humor (basta ver alguns vídeos no You Tube de trechos de algumas de suas peças e com breves entrevistas). Note-se por exemplo que ele, Kantor, não hesitava em destacar que sua melhor fase foi quando se propôs a liderar um teatro experimental clandestino durante a ocupação alemã (por volta de
1942). Pois foi nessa ocasião que a luta deve ter-se mostrado ao mesmo tempo mais real e original. Como depoimento pessoal, deixo aqui registrada minha dificuldade em perceber o quanto a trajetória de Kantor foi e ainda é importante no panorama do teatro mundial. Foram necessárias diversas leituras em livrarias, de exemplares do livro aqui resenhado, para conseguir captar algo da mensagem do polonês aqui retratado. Hoje torna-se difícil para mim abordar o teatro sem lembrar o radical e bem-humorado polonês.

Marco Aurélio Scarpinella Bueno - Shnittke, Música para Todos os Tempos

Biografia musical de Anfred Shnittke (1934 - 1998), maior compositor russo após Shostakovich. Bem editada, cobre toda a vida do compositor, focando-se em especial nas músicas compostas por ele ao invés de em sua vida propriamente dita. Bem documentada (elenca todas as obras conhecidas do autor, assim como seus melhores e mais conhecidos intérpretes), a obra expõe, em poucas palavras, em que consistem as músicas, descrevendo-as pormenorizadamente. Localizando o compositor em relação ao seu contexto histórico, a biografia expõe com riqueza de detalhes sua carreira, focando em especial sua luta contra o regime soviético, que sem meias medidas atrapalhou sua produção assim como seu reconhecimento mundial, assim como o caráter eminentemente religioso de suas últimas peças. Sem prejuízo de sua complexidade e compreensão, a biografia convida o leitor a entrar no universo musical de Shnittke.

396 páginas, Algol Editora, apresentação de Lauro Machado Coelho.

Nasseh, Jorge - Técnica e Prática de Laminação em Composites *

Um dos maiores especialistas mundiais em construção de barcos em materiais composites (fibra de vidro, fibra de carbono, resinas termofixas e materiais de núcleo), Jorge Nasseh, diretor da Barracuda Technologies (Rio de Janeiro, RJ), dividiu seu terceiro livro em duas partes: uma primeira, básica, para atingir o laminador inexperiente, e uma segunda, avançada, para demonstrar um novo processo de construção de barcos, de sua criação. O livro tem introdução de Nestor Volker, do estaleiro argentino Néstor Völker Yacht Design.

Laminação Manual
Nasseh começa o capítulo explicando por que a laminação manual é um processo do passado. Ele diz que, seja em eficiência de método ou em resultado final, a laminação manual não é mais páreo contra qualquer outro processo de fabricação de peças em composites. Mas Nasseh explica também que, sem o aprendizado da laminação manual, nenhum laminador vai muito longe. Pois laminar manualmente é o método pelo qual todo laminador começa a entender de composites. Ou seja, as dificuldades enfrentadas na laminação manual fazem o bom construtor em outros processos. Outro motivo que obriga o fabricante a entender de laminação manual é que, em maior ou menor grau, qualquer outro processo faz uso de tarefas manuais de construção (para cortar ou recortar os reforços, efetuar lixamento, pintar ou efetuar polimento nas peças).
A laminação manual consiste em laminar com resina uma ou várias camadas de reforço (fibra de vidro, carbono ou aramida) sobre um molde, dispersando a resina de modo uniforme sobre as fibras e esperando pela cura da resina. A laminação só pode ser feita com duas ou três camadas de reforço por vez, por causa da liberação do calor da peça. A laminação manual também serve para peças em materiais sanduíche, havendo técnicas e adesivos especiais para esse tipo de aplicação. Nesse caso, a linha de colagem entre as camadas possui importância fundamental.

Moldes
Segundo Nasseh, tudo começa com o molde, que, segundo ele, é sempre muito mais difícil de laminar que uma peça.

Cera Desmoldante
Moldes novos requerem aplicação de mais desmoldante para que eles retenham quantidade suficiente de produto. Se for usado, o molde precisará ser limpo. O excesso de cera também ajuda a colar a peça nova no molde. A cera deve ser removida com solvente.
Os desmoldantes mais comuns são os de cera, os líquidos tipo semipermanente e o álcool polivinílico. Desmoldantes para poliéster e epóxi são diferenciados, pois para lidar com temperatura são necessários produtos especiais. Na aplicação de cera, moldes novos requerem pelo menos seis demãos. Quanto maior o intervalo das demãos, melhor. Moldes continuamente usados requerem apenas duas demãos.

(cont.)

* Resenha que foge do perfil das outras deste blog, pelo fato de eu ser editor técnico da revista Composites & Plásticos de Engenharia. Essa condição motivou-me a ir mais fundo, resumindo os principais tópicos - e portanto o conteúdo - do livro. A intenção não é contudo desmotivar a compra do livro em si, que pode ser feita no site http://www.barracudatec.com.br. Por todos esses fatores esta resenha não tem data para acabar (junho de 2011).

Nossa visão

Por que mais um blog com resenhas de livros?

Por uma razão bem concreta: as resenhas disponíveis no mercado não atingem o leitor.

Como podemos afirmar isso? Basta acompanhar os jornais e revistas - ou jornais - especializados. Assinadas por jornalistas ou acadêmicos, as resenhas de livros que vemos por aí pecam de duas formas: ora abusando do jornalismo (no primeiro caso) ou do excesso de referências acadêmicas (segundo caso). Onde fica o leitor, nisso tudo? Perdido. Sem saber se confia na atratividade jornalística do livro ou do autor ou se se deixa levar pelo academicismo galopante que assola as resenhas especializadas.

Claro que há exceções nisso tudo. Ou seja, há jornalistas que vêem muito além do jornalismo puro e simples, e acadêmicos que não querem usar a oportunidade apenas para demonstrarem domínio do seu metier. Mas as exceções são isso mesmo: exceções.

Este humilde blog pretende mostrar uma terceira via. Em textos pouco herméticos (como necessário) serão abordados livros dos mais variados matizes e áreas tendo como principal foco mostrar se vale realmente a pena comprá-los, lê-los e acumulá-los nas estantes. Ou seja, se realmente atingem seu alvo. Nesse esforço, espera-se que todos ganhem: o autor, a editora, o autor do blog e das resenhas e, mais importante, o leitor. É realmente o que esperamos que aconteça.


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quinta-feira

Bagana na Chuva, de Mário Bortolotto (Editora Ciência do Acidente, Jales, SP)

O livro é de 2003. E parece que o tempo não passa, ou passou.


Há uma narrativa, sim, nesses 59 capítulos de tamanhos os mais diversos, em que aos poucos, e aos trancos e barrancos, Cardan, o herói ou anti-herói desta história sem começo nem fim, mostra uma fauna em progressão de homens, boys, putas, descoladas, frescas e de amigos, e em que estes, resolvidos, sim, mas a gastar a vida em meio a bebidas, preconceitos e discussões sem fim sobre assuntos que valem e que não valem a mínima pena, abrem as portas a um mundo em que o otimismo não tem lugar e em que a sensação de felicidade vem misturada a um amargor forte e a experiências passadas em meio a bebidas, mesas, ruas, vielas, banheiros, cozinhas, salas apinhadas de tranqueiras e, por que não, até em quedas d'água e sexo anal. Tudo muito temporário, provisório, humano, enfim.

O amigo Reinaldo Moraes, jornalista de antiga cepa, prefacia o livro. Se só o prefácio já mereceria uma resenha, breve, é claro, até para não superar o tamanho do primeiro, o livro ainda mais. Mas pouco seria explicar, se é que dá para explicar, o universo em que a trama, sem eira nem beira, se desenrola aos nossos olhos. Melhor seria dizer que por detrás da trama há muita música, blues e rock'n roll, alguma droga, bastante sexo, alguma pancadaria, bobagens as mais diversas, amores ingratos, desamores ainda mais, histórias em quadrinhos, filmes, robert de niro e por aí vai. Um universo que provoca, pois embora haja quem possa se sentir realmente à vontade reconhecendo aqui e acolá exemplos de mitologia blues e rock, não o mesmo pode acontecer com o comportamento dos personagens, todos aparentemente calcados em pessoas reais. Cardan, pelas semelhanças e tudo o mais, é, como é claro, o próprio Bortolotto. Mas e o Sbórnia, e a Paula, e n outros personagens que pululam aqui e acolá a depender das necessidades prementes desse que parece ser ainda algo menos que um herói sem caráter? Haverá heróis nessa bagaça toda?

A gente se sente guiado pelas mãos do sujeito. Embarcamos em situações inglórias, outras com final feliz, se é que existe realmente final feliz em qualquer história que se preze, e aos poucos sentimos sendo injetados em nós os ingredientes que fazem o universo dessa geração de quadrinhos, blues, sexo, drogas e rock n roll.

Termina cedo, o livrinho. Deixa uma impressão de querer mais, mas, ainda melhor, convida a ser lido e degustado novamente, pois o que de mais se encerra em tão poucas páginas não é bem um conteúdo, mas um estilo de vida expresso em palavras que nos dizem que algo vale, sim, a pena, só não se sabe por que, nem quando, nem a que ponto. O negócio é viver e deixar rolar.

Ah, sim, bagana é - eu não sabia - bituca de cigarro.